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Coluna: Quem tem fome tem pressa

Sami Goldstein
Em 1993, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, lançou a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida para melhorar um pouco a vida de milhões de brasileiros abaixo da linha da pobreza. Com o slogan “quem tempo fome tem pressa”, ele mobilizou a sociedade em um movimento nacional de arrecadação de alimentos. Betinho se foi deixando seu legado de luta pelo coletivo mas seu sonho de ver a fome erradicada não se concretizou. Décadas depois, acentuada pela pandemia da Covid-19, a crise só se agravou. De acordo com o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19, desenvolvido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan), como parte do projeto VigiSAN, 55,2% (116,8 milhões de brasileiros) convivem com a insegurança alimentar e não têm acesso pleno e permanente a alimentos, um aumento de 54% com relação a 2018. Desses, 43,4 milhões (20,5% da população) apresentam insegurança alimentar moderada ou grave e 19,1 milhões (9%) estão com insegurança alimentar grave e passam fome no seu dia a dia. A pesquisa foi realizada em 2020 e contemplou 2.180 domicílios nas cinco regiões do país, em áreas urbanas e rurais.
O ano de 2021, embora ainda não tenha produzido todos seus relatórios, já deixou marcas bem profundas em nossas mentes e corações. Com fome, sem comida e passando necessidade, a população do Rio de Janeiro está recorrendo a restos de ossos e carne para sobreviver. De acordo com reportagem do jornal Extra, a situação está acontecendo na Zona Sul do Rio. Segundo ela, o caminhão que recolhe ossos e pelancas de supermercados da cidade chega de manhã no local e, minutos depois, a fila se forma. Com pena, motorista e ajudante da empresa doam ali toda terça e quinta parte do que foi recolhido.
Conseguimos conceber a dimensão do desespero causado por essa fome para subjugar as pessoas de tal maneira humilhante? Acredito que não. Na contramão de qualquer resquício de sanidade, ao mesmo tempo em que pessoas se amontoam para catar restos, ações de frigoríficos disparam na nossa Bolsa de Valores. “O que tem a ver uma coisa com a outra?”, certamente alguém perguntará, apenas demonstrando o hiato que existe entre nossa definição comum de fome e as cenas que presenciamos. Estar com fome, ter fome e passar fome são situações bem diferentes. As duas primeiras causam desconforto temporário. A última traz dor e morte. Betinho teria a resposta na ponta da língua: quem tem fome tem pressa. Mas a pressa do Brasil das picuinhas são espetáculos televisivos que mascaram a sombria realidade. O profeta bíblico teve a visão de um vale de ossos secos como uma promessa de esperança. O vale dos restos de ossos de hoje traz a mensagem do descaso e da falta de políticas públicas para o que realmente é necessário. Passou da hora de mudar isso. Para que não chegue a hora em que nem ossos mais teremos para correr atrás…

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